Onde estão as ciências sociais?

Outro dia o Safatle escreveu um artigo sobre o lugar da filosofia no debate público contemporâneo (http://www1.folha.uol.com.br/colunas/vladimirsafatle/2016/09/1813733-atribuicao-da-filosofia-em-momentos-como-este-e-acelerar-o-desabamento.shtml). O argumento dele é de que a filosofia não deve estar a serviço de soluções supostamente “práticas” para produzir mais conforto e bem-estar na vida das pessoas, pois seu lugar de enunciação é a crítica e a possibilidade de imaginar coisas ainda não existentes. Ou seja, ela não teria como missão encontrar formas mais adequadas de gerenciar o mundo. O artigo me fez pensar sobre o próprio lugar das ciências sociais no Brasil. Meu palpite é de que nossa linguagem está em todo lugar, mas nossos profissionais, não. Explico-me.

Recentemente, sentei-me em frente a um computador com um colega e um aluno para olharmos alguns dados extraídos da base RAIS, que apresenta informações sobre trabalhadores brasileiros disponibilizadas pelas empresas. Nosso objetivo era encontrar indicadores sobre renda e dados demográficos dos cientistas sociais fora do mundo acadêmico. Afinal, a RAIS trabalha com um código de ocupações que tem as categorias “cientista político”, “antropólogo'”, “sociólogo” e “pesquisador em Ciências Humanas e Sociais”. Promissor, né? Só que não. Se somar o número absoluto de profissionais que encontramos codificados nessas categorias no ano de 2015 em estabelecimentos públicos e privados, não dá 4 mil rs. O motivo? A codificação é feita pelo empregador, e não deriva do título ou diploma que o sujeito tem, mas da função exercida. Ou seja, um egresso do curso de Ciências Sociais pode ser empregado em uma instituição cultural e ser informado como gestor de projetos ou analista ou coisa que o valha.

A primeira reação da nossa corporação seria tomar isso como uma evidência da desvalorização do nosso campo no mercado. Assim, teríamos que lutar contra o rebaixamento do diploma e pressionar por concursos públicos para sociólogos. Mas, quem garante que o sujeito classificado como “analista” não esteja, afinal, trabalhando a partir das competências que desenvolveu no seu curso de Ciências Sociais? O cara está lá analisando dados, escrevendo textos interpretativos e oferencendo hipóteses sobre o fenômenos tidos como “sociais”.

Porém, se existem poucos cientistas sociais assim reconhecidos, a linguagem das ciências sociais está razoavelmente disseminada no mundo, sendo operada por diferentes profissionais, com mais ou menos habilidade. O técnico da prefeitura que está pensando a relação entre formas de habitação e estilos de vida de moradores de uma favela está operando um raciocínio tipicamente sociológico, da mesma forma que um profissional de ONG desenvolvendo uma oficina que busca sensibilizar jovens  sobre a cultura do estupro. Aliás, o próprio fato da expressão “cultura do estupro” estar hoje disseminada em redes sociais é uma prova da vitalidade da linguagem das ciências sociais, mais particularmente da antropologia. É claro que muita coisa ruim e tosca pode estar sendo feita, mas meu ponto não é sobre a qualidade, mas sim sobre o tipo de discurso e prática. Hoje, por exemplo, a afirmação de que o desempenho de um aluno é afetado por variáveis de renda ou pela escolaridade dos pais é algo quase banal, e a maioria das políticas públicas, sejam elas boas ou ruins, parte do pressuposto de que você pode buscar alterar esse desempenho modificando algumas dessas variáveis ou levando-as em conta. Sociologia, gente.

Isso coloca um problema brutal para os estudantes de Ciências Sociais e todos envolvidos nessa especialização disciplinar. O argumento venceu, mas pagando o pedágico da frouxidão profissional. Os economistas discutem educação, os urbanistas usam antropologia para pensar cidades, mas e os tais cientistas sociais fazem o quê, exatamente?

Confesso não ter clareza sobre uma solução, mas suspeito que ela passe por assumir que embora fazer ciências sociais não seja atribuição exclusiva do cientista social, haveria um sentido específico na formação disciplinar em ciências sociais. Essa formação estaria associada tanto a um conjunto de métodos para analisar e falar sobre a vida em comum dos homens, como a uma sensibilidade específica para integrar saberes e visões em uma perspectiva mais reflexiva. Vou dar um exemplo em português claro: já vi projetos interessantes sobre microcrédito em bairros populares, envolvendo profissionais e especialistas em economia e administração. Porém, não era difícil ver que uma boa etnografia resolveria vários problemas e erros que eram visíveis no desenho do projeto, além de problematizar os próprios projetos em si. Do mesmo modo, economistas que curtem refletir sobre educação ganhariam muito caso ouvissem mais o que cientistas sociais têm a falar sobre a meritocracia e seus efeitos na reprodução da desigualdade material e simbólica.

O que estou defendendo é que não faz o menor sentido imaginar que haja algo chamado “social” que seja um domínio exclusivo de socólogos e antropólogos (aliás, essa ideia não é original, pois o Bruno Latour vem defendendo isso há algum tempo). Não é defendendo um reino específico que vamos encontrar um lugar para a profissão, até porque processos que juntam pessoas, cenários e ações estão em todos os lugares possíveis. A grande parada é ver nossa disciplina como produzindo formas de falar sobre esses processos que são mais reflexivas e abrangentes, e não compartimentadas. Isso nos permitiria também ver que os espaços nos quais essa formação pode ser exercida são os mais variados, só não dá para esperar o registro na carteira como sociólogo. Aliás, do jeito que a coisa vai, já já quem coloque em dúvida a própria existência de carteira de trabalho…

4 comentários sobre “Onde estão as ciências sociais?

    1. Oi Luciana, desculpe a demora em responder. Obrigado pelo texto, que só li agora! muito interessante, em especial pela visão histórica do lugar global das ciências humanas (hoje muito questionadas)

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  1. Belíssimo insight, João. De fato, é uma parte do sonho positivista que parece concretizar-se, qual seja, o de um sistema social cada vez mais “sociologizado”, com códigos que são tipicamente do campo científico da sociologia transitando por aí, e até organizando coisas por aí. Só fico me perguntando sobre as possíveis “soluções”, porque em bom português, parece tratar-se da apropriação de nossas descobertas, análises, pontos de vista, conceitos operativos etc. (o que, em geral, desejamos) mas sem o devido reconhecimento em termos de prestígio, emprego e renda. Lembro de leituras que realizei há mais de dez anos no campo da chamada sociologia das profissões. A maioria delas enfatizava pra mais ou pra menos a importância da autoconstrução dos grupos profissionais, que reivindicavam um saber e uma fala legítimos, de forma um tanto cínica até, com interesses de manutenção de reserva de mercado, a partir dos quais desautorizava-se a fala dos estrangeiros ao campo. Medicina, psicologia, e outros. Me parece que epistemologicamente de fato fica difícil separar um objeto, o “social”, só pra gente, mas me pergunto se esse não reconhecimento não tem mais que ver com nossa dificuldade de entrar, a partir de estratégias políticas, no jogo do mercado das profissões (o que demanda certo cinismo pela reivindicação de um saber autorizado). As profissões com conselhos como psicologia, educação física etc. garantem mais posições no mercado de trabalho, concursos e contratações específicas para seus credenciados, embora seus objetos tampouco aparentem exclusividade. Me pergunto de fato se queremos, dados os riscos que imaginamos internamente, e ainda, se saberíamos como fazê-lo.

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    1. David, obrigado pelo comentário! Cara, eu acho esse problema difícil de ser resolvido. O campo das ciências sociais é definido muito pelos que estão na vida acadêmica e que, de modo geral, organizam suas trajetórias nas associações científicas (e não sindicais). Sinto muita resistência desses atores a esforços mais ‘corporativos’ de profissionalização, embora haja várias iniciativas nesse sentido (há um sindicato no Rio, por exemplo). Reconheço que esse ‘lassier-faire’ é um pouco decepcionante para aqueles que saem das graduações com vontade de trabalhar na sociedade civil ou em governos, e desejam (justamente) mais reconhecimento e prestígio.

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