O blog não é especializado em educação e pedagogia, mas impossível ignorar a recente Medida Provisória 746, que busca reformar o ensino médio brasileiro. Passei uma manhã lendo o texto e tentando encontrar artigos e opiniões que pudessem me ajudar a destrinchar aspectos que me pareceram excessivamente vagos. O que se segue é uma primeira tentativa de entender os possíveis impactos da MP em um sistema de ensino marcado por grandes diferenças regionais.
É bom começar tirando os bodes da sala. A Lei de Diretrizes e Bases de 1996 já mencionava de forma explícita a possibilidade da educação profissional estar articulada ao ensino médio, e a palavra “trabalho” surge nos seus três primeiros artigos. Do mesmo modo, a LDB também previa a possibilidade de organização curricular por meio de ciclos, grupos não-seriados e outras formas alternativas que não a divisão tradicional de boa parte das escolas – basta ler seu artigo 23.
Mesmo afastando esses bodes, a MP permanece sendo bem esquisita. O coração do texto é o artigo 36, que prevê a organização de cinco itinerários formativos que poderiam ser cursados pelos estudantes de modo mais flexível. São eles: linguagens; matemática; ciências da natureza; ciências humanas; formação técnica e profissional. Interessante, mas o parágrafo primeiro diz que os estados PODERÃO organizar suas redes com mais de uma opção. Não há, portanto, nenhuma obrigatoriedade de que as redes ofereçam um mínimo de itinerários ou mesmo todos, tornando possível que um determinado estado ofereça apenas duas delas, por exemplo, alegando que isso não afetaria a formação integral do aluno. Do mesmo modo, não há indicação de que o aluno possa cursar mais de um itinerário formativo ao longo de seu ensino médio, embora ele possa trocar de itinerários.
O itinerário formativo V é o que mais me provocou dúvidas. O parágrafo 11 diz que as redes poderão contemplar “experiências práticas de trabalho” ou “ambientes de simulação”, mas não se diz muito além disso. É possível imaginar que um estudante de determinada rede faça apenas o itinerário formativo V trabalhando como menor aprendiz um ano e meio? A MP deixa aberta essa possibilidade, e embora diga que os itinerários devem dialogar com a Base Nacional, que mecanismos seriam criados para evitar que se institucionalize alguma forma precária de trabalho no lugar de um efetivo diálogo entre escola e mundo do trabalho, como preconiza a LDB? Essa é uma preocupação comum de várias entidades que se manifestaram contra a MP, como se pode ver aqui.
A coisa fica mais estranha no parágrafo 17 do artigo 36, em que a MP prevê as diferentes formas de atestar reconhecimento de conhecimentos adquiridos fora do sistema escolar. Prevê-se no seu inciso I a “demonstração prática” como mecanismos de reconhecimento. Note-se que não há limite para a concessão de equivalências ou reconhecimentos, como é usual nas instituições de ensino superior. Algumas questões: que instância na rede escolar seria responsável por atestar o conhecimento prático? É possível atestar conhecimentos que sejam equivalentes a toda carga horária de um itinerário formativo, particularmente o V?? Isso significaria que mesmo experiências de trabalho adquiridas fora de qualquer interação com o sistema escolar poderiam ser reconhecidas como legítimas para o itinerário V? Note-se que o incisco II do mesmo parágrafo 17 diz que podem ser reconhecidas “outras experiências adquiridas fora do sistema escolar”, mas não as especifica.
O objetivo declarado dessas medidas é combater a evasão escolar, reconhecendo a realidade dos jovens que trabalham e terminam por se afastar da escola. Sim, mas se essa é a ideia, por que não se diz nada sobre o ensino noturno e EJA? Além disso, um efeito possível dessas medidas seria: a) uma inflação artificial do número de concluintes do ensino médio, com algumas redes concedendo de forma muito liberal o reconhecimento pleno para quaisquer atividades feitas pelo jovem; b) a oficialização de formas precárias de trabalho juvenil, quando o ideal seria que a escola estivesse relacionada com o mundo do trabalho, mas de forma mediada e com orientação pedagógica clara.
O único mecanismo que a MP prevê para tentar evitar esses efeitos é a criação de mecanismos de avaliação que sigam as Bases Nacionais de cada área de conhecimento. Ou seja, estados que interpretassem a MP como uma espécie de salvo-conduto para oficializar situações precárias e formação ruim seriam punidos nas avaliações, mas continuo achando complicado não estabelecer critérios mais objetivos para organização dos itinerários e mesmo para os mecanismos de integração entre escola e mundo do trabalho.
Acho que a edição dessa MP diz muito sobre o estado atual de nossa democracia. Em primeiro lugar, pelo próprio uso do instrumento em si, já que efetuar uma transformação tão drástica no ensino brasileiro por meio de Medida Provisória é algo assustador. É indicativo da vocação “democrática” do Interinato, mas também sintoma de problemas mais estruturais do sistema presidencialista, pois as MPs também eram fartamente utilizadas nos governos anteriores. Em segundo lugar, o descaso por disciplinas como Filosofia e Sociologia casa-se perfeitamente com a falta de posicionamento claro do Ministério sobre projetos do tipo “Escola sem Partido”, que vêm sendo apresentados em diferentes espaços legislativos por figuras, partidos e correntes de opinião que se identificam com o Interinato. Provavelmente, imaginam que são “coisa de comunista” ou veículos para propagação da tal “ideologia de gênero”, estranha expressão que transforma um conceito utilizado justamente para criticar ideologias naturalizadoras em uma susposta ideologia. Desnecessário reiterar que não é possível construir um ambiente escolar livre e democrático com base em projetos desse tipo. Finalmente, a MP é editada sem nenhuma discussão sobre as Licenciaturas, como se fosse possível reorganizar radicalmente o ensino médio sem mudar a forma como os professores são preparados. Esse movimento me parece atualizar uma tendência recente do debate sobre educação, que é o protagonismo dos especialistas e dos consultores em detrimento de alunos e professores, estes últimos usualmente vistos como obstáculos ao correto aprendizado.
A MP vai para o Senado, mas deixada ao sabor da vida institucional, nada de muito substantivo será alterado. Afinal, a MP estará blindada de críticas oriundas de sindicatos, associações profissionais, movimentos docentes e faculdades de pedagogia, pois o Interinato e parte significativa da imprensa não terão dificuldade em rotular esses atores como “petistas” ou “corporativistas”, com o clássico “comunistas” sendo eventualmente sacado aqui e ali para nos lembrar que as caixas de comentários do G1 viraram establishment. Será uma eventual ressurgência da juventude escolar que poderá colocar um freio no processo, como evidenciou o movimento de ocupação das escolas em São Paulo. Resta saber se ainda há escuta democrática no Brasil de 2016.