Das coisas que não cabem no Lattes.

Como alguns sabem, estou começando uma pesquisa sobre as práticas de trabalho dos cientistas sociais em tempos de produtivismo acelerado. Como parte dessa pesquisa, tenho lido livros, artigos e blogs, além de realizar entrevistas com pesquisadores. Nesse trajeto, topei com dois colegas de gerações muito diferentes que ofereceram ótimas reflexões sobre essa questão, ajudando-me a pensar mais sobre o mundo alucinado em que vivemos na academia.

O primeiro colega foi o Alexandre ‘Bolinho’, grande parceiro dos tempos do róqui que é psicólogo e trabalha como professor no ensino superior.  Bolinho tem um blog legal chamado Una Charla, onde publicou recentemente o post “A vida não cabe no Lattes” , em que faz uma desabafo sobre os impactos mentais e emocionais do tal produtivismo, mostrando que ele é mais do que um simples discurso: é um conjunto de práticas que têm cada vez mais características sistêmicas, incidindo sobre nossas rotinas, nossos projetos, nossas aulas e, até sobre o nosso sono (Aliás, não deixem de ler o belo livro de Jonathan Crary sobre o capitalismo tardio 24/7, que mostra como as dinâmicas de hiperconectividade do mundo atual colonizaram todas as esferas de nossas vidas – só o sono ofereceria o último refúgio diante da mercantilização).

O post de Bolinho também chama a atenção para o modo como as instituições estão atribuindo mais poder a profissionais cuja função é extrair o máximo de ‘impacto’ e ‘produtividade’ do corpo docente das instituições de ensino e de pesquisa. Essa gestão é racionalizada em função de sistemas métricos e/ou padronizados de avaliação, vendo como inutilidades várias dimensões de nosso trabalho que não são tidas como  ‘produtivas’. O post me fez pensar que é um engodo a ideia de que não queremos ser cobrados pela nossa ‘produção”. Afinal, quando um professor investe tempo, energia e tesão na preparação de uma aula ou de um curso, ele está trabalhando no sentido marxiano clássico – há investimento de capacidade física e intelectual na elaboração de um projeto, há interação humana com outros sujeitos e há potência sendo ativada. Do mesmo modo, quando fazemos pesquisas, estamos também trabalhando e produzindo, contribuindo para a ampliação da vida em comum dos homens.

O que o discurso do produtivismo faz é reduzir drasticamente o escopo do que é efetivamente trabalho intelectual, que passa a ser contabilizado e traduzido na forma de artigos científicos e, quando muito, livros. Ao mesmo tempo em que reduz os significados possíveis do trabalho intelectual, ele intensifica o ritmo de produção (por exemplo, diminuindo o circuito temporal entre a pesquisa, a análise de dados e a publicação de resultados) e amplia o espaço da vida dos docentes que é submetido aos imperativos sistêmicos. É por isso que trabalhamos em casa e nos finais de semana, processo facilitado pelo fato de que a maioria absoluta dos professores que conheço AMA trabalhar.

O post do Bolinho tem tom pessimista, mas fecha com uma declaração de convicção na potência do trabalho docente. Por coincidência, essa potência foi tema de uma entrevista que fiz nesta semana com minha querida ex-orientadora de doutorado Maria Alice Rezende de Carvalho (leiam aqui esta entrevista para conhecê-la melhor). Na entrevista, conversamos sobre a sua trajetória profissional, e foi impactante ouvi-la falar sobre suas práticas de preparação de aulas na graduação. A despeito de ministrar aulas de teoria sociológica clássica há bastante tempo, Maria Alice volta sempre aos textos originais, procura comentadores atuais, prepara imagens para aulas e investe tempo e potência para encontros regulares com jovens de 17 ou 18 anos. Diriam que um professor não faz mais do que a obrigação ao realizar o seu trabalho com esmero, mas meu ponto é que o sistema de avaliação atualmente existente na CAPES não dá a menor pelota para essa ‘produção’. Ou seja, o profissional que investe sua energia na docência sabe que está fazendo uma opção desprestigiada e arriscada. No nosso papo, Maria Alice também ponderou que estamos restringindo barbaramente a diversidade de trajetórias profissionais acadêmicas. Afinal, para sobreviver na selva, só é possível seguir o caminho da produção de artigos em revistas científicas, único que atende aos requisitos sistêmicos atuais. Não acho que seja um caminho intrinsecamente ruim. Afinal, escrever sobre os resultados de nossos trabalhos e submetê-los à crítica de colegas é parte primordial do trabalho intelectual, e quanto mais procurarmos incrementar nossa produção coletiva de boa ciência, melhor – eu mesmo escrevi vários artigos, e fui socializado nessa cultura científica. Porém, o que deveria ser um investimento intelectual dentre outros que compõe o nosso ofício, transformou-se num imperativo sistêmico que não abre espaço para outros tipos de perfis de cientistas que possam ser reconhecidos.

Esses dois encontros me fizeram pensar que há uma enorme capacidade de produção científica que não está sendo propriamente estimulada no país. A formação de estudantes e jovens pesquisadores, por exemplo, tema ao qual sempre retorno neste blog, deveria ter um espaço crucial nas agendas de gestores e dirigentes acadêmicos, e iniciativas de publicização da ciência deveriam deixar de ser exigências protocolares em editais de financiamento para se converterem em núcleos do trabalho intelectual. Ao mesmo tempo, o sofrimento físico e mental relatado no post de Bolinho deveria ocupar o centro de atenção das associações científicas nacionais, sob risco de vermos a ciência se transformar numa máquina que gira sozinha e que, no limite, dispensa os próprios cientistas ou trabalha contra eles.

13 comentários sobre “Das coisas que não cabem no Lattes.

  1. Suas reflexões aqui neste blog têm me ajudado bastante na minha própria pesquisa sobre a publicação de livros em ciências sociais. Como você bem sabe, o livro é uma modalidade de circulação de conhecimento científico que perdeu bastante espaço para os artigos, seja em termos de reconhecimento institucional (o sistema de pontuação do Lattes é pouco sensível às diferenças entre um livro e um artigo), seja em termos de produção de conhecimento, já que a visualização do “produto final” tende a influenciar a própria forma como a pesquisa e a escrita vão ser conduzidas.

    Por outro lado, o livro ainda goza de um certo prestígio em algumas áreas específicas das ciências humanas, sendo muitas vezes visto como algo mais bem acabado ou definitivo. Porém, também neste universo, pode-se perceber influências deste “produtivismo” de que você fala, seja no crescimento do número de “editoras” querendo publicar teses recém-defendidas, desde que o autor pague pelos custos de edição, seja na proliferação de coletâneas que, em muitos casos (existem, claro, ótimas exceções) é mais uma forma de se pontuar no Lattes.

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    1. Oi Leonardo, obrigado pelo comentário! De fato, os livros ainda contam na avaliação dos programas de pós-graduação de Humanidades. Mas, eu diria que as condições hoje para um sujeito escrever um livro autoral de cabo a rabo são ruins. O mais comum é você ver o cara publicar uma coletânea autoral de artigos e/ou ensaios, porque só um doutorando hoje em dia consegue ficar tanto tempo pesequisando e matutando um problema, uma questão etc.

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      1. Verdade, João. A disponibilidade de tempo diante das demandas de trabalho é algo fundamental. Ainda mais, acredito, se pensado junto com os estímulos para tipos específicos de publicação. Pensando de forma hipotética e resumida: tenho mais retorno fracionando minha pesquisa em alguns artigos do que esperando o amadurecimento das reflexões para a publicação de um livro. Talvez seja o caso de se repensar a valorização de trabalhos específicos. E ai não entra somente a publicação de livros, mas o trabalho do próprio editor, que nas editoras universitárias, por exemplo, deixa de produzir pesquisa para se dedicar ao trabalho editorial e perde em termos de ascensão na carreira acadêmica.

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  2. Tenho lá meus “senões” com relação à esse debate… Penso que há muito reducionismo e atitude de “jogar fora a água da banheira com o bebê” após o banho. O Lattes não é um problema em si, acho-o muito útil na verdade. Vc ter seus trabalhos organizados numa plataforma que pode ser acessada em qualquer lugar, fugindo aos famosos currículos de papelaria que nos enlouqueciam, deixar público nossos interesses de pesquisa para futuras parcerias e oportunidades. Quantas vezes somos “encontrados” por pesquisadores que nem conhecemos “ao vivo e à cores” por causa do Lattes. Ele ajuda até a fazermos uma catalogação dos temas de pesquisa mais em voga em determinadas épocas. O problema está no produtivismo? Talvez sim, quando é assumido como um modus operandi fordista, em busca de algum benefício outro. Mas há muitas pessoas que produzem muito com excelente qualidade e não o fazem para provar nada à ninguém, é apenas delas, porque escolheram usar seu tempo dessa forma, porque possuem material para extroversão acadêmica, porque simplesmente gostam. Então, devem ser condenadas na fogueira da crítica ao produtivismo? Penso que o complicado é “ser obrigado a produzir em quantidade” para atender à critérios de agências de fomento, mas mesmo assim não vejo grandes “revoltas públicas eficazes” contra essas pressões, algo do tipo: “rejeito minha bolsa de produtividade enquanto isso persistir!” ou “não pedirei financiamento algum e não usarei o logo dessa agência de fomento enquanto isso persistir”. Ao contrário, muitos dos que criticam o Lattes são subvencionados pelas mesmas agências que impõem o produtivismo e se adequam à elas. Me parece estranho! Por isso, acredito mesmo que esse debate é muito mais profundo e também deve levar em consideração a total ausência de qualquer produção por pseudos-intelectuais que chegam ao serviço público e simplesmente colocam o casaco nas costas da cadeira e somem! Nem 8, nem 80. O Lattes precisa ser ressignificado!

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    1. Oi Janaína, eu concordo que o debate não é simples. Tanto que fiz a ressalva de que eu mesmo ‘produzo’ artigos porque acredito nessa forma de comunicação científica e na necessidade de pesquisadores divulgarem seus resultados e submetê-los à crítica. Sou bolsista de produtividade e estou há alguns anos nesse ‘jogo’, mas eu sinceramente acho que o sistema em geral tem falhas que precisam ser apontadas e questionadas. Até mesmo países pioneiros em sistemas métricos de avaliação da produção intelectual (como a Inglaterra) tem estimulado o debate sobre o tema.
      Sobre Lattes em si, nenhum problema com ele! Eu mesmo o uso como instrumento para pesquisa empírica (seleção de entrevistados etc). Meu ponto é: de que modo a atividade de ensino dos cientistas sociais entra no modo de avaliar o desempenho de profissionais que são docentes? É difícil medir isso? De fato, mas a gente precisa discutir.
      Eu não acho que a solução seja uma rejeição radical do sistema como está, mas a crítica ao seus efeitos e uma dupla estratégia: a) modificar indicadores e/ou incorporar novas dimensões do trabalho intelectual que não estão sendo avaliados; b) criar outros espaços para produção de conhecimento que não necessariamente precisem ser ‘mensurados’, garantindo tempo para os cientistas sociais que desejem investir em comunicação pública, divulgação científica etc.
      Abs

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  3. Olá jmehlert,

    Gostei do texto e o divulguei em minha página. No entanto, tendo a concordar, pelo menos em parte, com os argumentos da Janaína. Há que se pensar no conjunto da vida universitária e acadêmica brasileira, e suas relações com a comunidade internacional, para verificar, inclusive, as enormes armadilhas que criamos para nós mesmos. Muito do que inventamos na universidade brasileira contribui para que tenhamos, também, pouco tempo para pesquisar, ler e escrever. O Lattes e, muito mais do que ele, as avaliações da pós-graduação são apenas sintomas de um modo de institucionalização da pesquisa no Brasil.

    Recentemente escrevi algumas coisas sobre isso, sobretudo no que se refere à Área da Educação, onde atuo. https://blogdopensar.wordpress.com/2016/06/24/avaliacao-da-pos-graduacao-questoes-dilemas-e-sugestoes/

    O debate é mais do que necessário e o seu texto nos ajuda a avançar nele.

    Ab

    Luciano Mendes

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  4. Oi João. Li seu texto por meio do facebook do professor Luciano. Sempre considerei este debate (vida/lattes/produção/trabalho) como um lugar de difícil acesso da academia em si. Eu penso que seu trabalho vem fomentar acessos a este lugar e eu agradeço por ter oportunidade de ler. Só passei mesmo porquê queria agradecer. A gratidão também não cabe no lattes. Abraços

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